“a filosofia
surge-nos, em concreto, como
expressão da vida espiritual duma Cultura”
Francisco da Gama
Caeiro
Em 2019, fomos presenteados
com mais um livro de Afonso Rocha (A Escola
Portuense em questão, Universidade
Católica Editora - Porto), decerto um dos mais produtivos investigadores na
área do pensamento português contemporâneo, que, nesta última dúzia de anos,
publicou uma série relevante de obras, de que destacamos: O Mal no Pensamento de Sampaio (Bruno): uma filosofia do mistério e da
razão (2006); Natureza, Razão e
Mistério: para uma leitura comparada de Sampaio (Bruno) (2009); A Gnose de Sampaio Bruno (2009); Fernando Pessoa e o Quinto Império
(2012); A filosofia da religião em
Portugal (2013); A segunda vinda da
Saudade: o messianismo de Dalila L. Pereira da Costa (2018).
De forma recorrente, temos
entrado em choque com Afonso Rocha, sobretudo nos (muitos) Colóquios onde ambos
temos participado. Decerto, não por má vontade nossa (ou dele), tendemos a
discordar muitas vezes. Lembramo-nos, por exemplo, quando, em Janeiro de 2018,
no Colóquio “A Obra e o Pensamento de António Braz Teixeira”, que decorreu no
Porto, Afonso Rocha pretendeu contrapor António Braz Teixeira a outros nomes da
Filosofia Portuguesa (como Pinharanda Gomes e Dalila Pereira da Costa), em nome
de uma prévia contraposição entre uma “razão histórica” e uma “razão
providencial”.
Nós, que, aceitando essa
prévia contraposição entre uma “razão histórica” e uma “razão providencial”,
estamos claramente do lado da “razão histórica”, nem por isso deixámos de
discordar publicamente dessa ulterior contraposição defendida por Afonso Rocha,
convocando, para tal, um outro nome: o de Agostinho da Silva. Sobretudo, para
desconstruir essa alegada contraposição, que tem muito mais pontes do que
muros. Com efeito, Agostinho da Silva está tanto do lado da “razão histórica”
como da “razão providencial” – em obras diferentes e, por vezes, de forma
paradoxal, como era seu timbre, numa mesma obra (como, por exemplo, em Reflexão à margem da literatura portuguesa).
E o mesmo poderíamos dizer de Pinharanda Gomes (talvez não tanto de Dalila
Pereira da Costa).
Também a respeito desta mais
recente obra de Afonso Rocha, não podemos deixar de manifestar publicamente uma
série de discordâncias. E não porque ela seja assumidamente uma réplica a uma
obra de Pinharanda Gomes, precisamente intitulada A “Escola Portuense” (2005). A amizade que nos liga a Pinharanda
Gomes não nos impede de discordamos dele igualmente em alguns assuntos. Apenas um
exemplo – que dá, neste caso, razão a Afonso Rocha: Pinharanda Gomes gosta de
dizer que “para a Filosofia Portuguesa, não há Filosofia sem Teologia”. Nós consideramos
que há – que nela há também lugar para ateus. Reconhecendo, porém, que o melhor
da “Filosofia Portuguesa”, tal como foi forjada pela “Escola Portuense”, tem
tido (pelo menos) também uma forte dimensão teológica.
Mas passemos então à polémica questão
da existência de uma “Escola Portuense”. Esquematicamente, Pinharanda Gomes, no
seu referido livro, consagrou essa designação – Afonso Rocha vem agora
contestá-la. Pela nossa parte, parecendo dar aqui razão a Afonso Rocha, nunca
considerámos que essa designação fosse a mais feliz. Se nos coubesse
baptizá-la, teríamos usado a designação “Escola Renascente”. E isto para
enfatizar o papel da “Renascença Portuguesa” e da Revista A Águia na consolidação dessa Escola – cuja figura maior, de resto,
nem sequer esteve particularmente ligada ao Porto (falamos de Teixeira de
Pascoaes, que, como é sabido, nasceu em Amarante e formou-se em Coimbra). Mas a
verdade é que os nomes maiores dessa Escola passaram pela primeira Faculdade de
Letras do Porto (cujo centenário do nascimento se comemora, de resto, este ano)
– e isso bastaria para aceitarmos a designação “Escola Portuense”.
Neste seu livro, Afonso Rocha
começa estrategicamente por relativizar o papel da primeira Faculdade de Letras
do Porto e da sua figura maior: Leonardo Coimbra. Assim, quanto a este, Afonso
Rocha defende que ele foi muito mais afim da Seara Nova do que da Renascença
Portuguesa, tal como Pascoaes a enquadrou (cf. 27, nota 7) – escrevendo
ainda: “Leonardo Coimbra, atenta a sua inquestionável afinidade com o
cristianismo católico, independentemente do posicionamento crítico que sempre
assumiu em relação ao mesmo (posicionamento crítico entretanto quebrado na
parte final da vida), jamais poderia identificar-se com a conceção, os
pressupostos e os objetivos da ‘Filosofia Portuguesa’” (p. 28, nota 8). Face a
uma passagem como esta, não podemos deixar de manifestar a nossa perplexidade.
Desde logo, pelo tom: como pode Afonso Rocha garantir que “jamais”?
Com efeito, como é sabido, os
nomes maiores da designada “Filosofia Portuguesa” foram, assumidamente, discípulos
de Leonardo Coimbra: falamos, em particular, de Álvaro Ribeiro e José Marinho.
Não escamoteando as muitas diferenças que existem entre os dois (e entre os
dois e Leonardo Coimbra) – que já aliás abordámos noutras ocasiões, como Afonso
Rocha bem sabe – e reconhecendo que, obviamente, os Mestres não têm que ficar
reféns dos seus discípulos (mesmo quando os reconhecem como seus discípulos), é
realmente espantoso que Afonso Rocha possa garantir (melhor dito: possa reconhecer-se
o direito de garantir) que Leonardo Coimbra “jamais poderia identificar-se com
a conceção, os pressupostos e os objetivos da ‘Filosofia Portuguesa’”. Ainda que
aqui não possa haver contraprova factual. Leonardo Coimbra, como se sabe,
faleceu prematuramente em 1936 (com pouco mais de cinquenta anos). Mas o mínimo
de prudência científica deveria ter levado Afonso Rocha a não ser tão
peremptório nesta sua tese.
Quanto à génese da Primeira
Faculdade de Letras do Porto, mesmo sem disputar a visão de Afonso Rocha – a de
que ela não foi uma “criação ou obra da Escola Portuense” (p. 20, nota 4) –,
diremos o seguinte: muito mais relevante do que saber com que motivação ela foi
criada, é compreender no que ela realmente se tornou (tenha sido essa ou não a
motivação). Diz o saber clássico que “as árvores se conhecem pelos frutos”. A
ser assim, a primeira Faculdade de Letras do Porto foi uma excelsa árvore, tais
os frutos que nos ofereceu. Não só, de resto, imediatamente, mas ao longo de
diversas gerações, que se reconhecem ainda nessa matriz. E de que matriz
falamos? Não tanto de um espaço, nem sequer de um tempo, mas de uma atitude:
de, na filosofia, darmos a devida importância à língua, à história e à cultura.
Nascido e falecido em Lisboa, Professor carismático da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, Francisco da Gama Caeiro deu-nos aquela que é,
provavelmente, a melhor definição de Filosofia (em epígrafe) da Escola
Portuense ou, como preferimos, da Escola Renascente.
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