“Ideias sobre Império e Fé”
Um dia, ou pelo trabalho de todas
aquelas circunstâncias externas que tantas vezes são consideradas como o motos
da história, ou por aquele interno querer que aparece como uma das teorias da
dita história – e creio que muito mais por este oculto impulso do que por
aquela aparente razão – surgiu, na ponta da Europa, uma nação que ainda não se
considera como a mais extraordinária e milagrosa do mundo pelos três seguintes
motivos: porque, segundo já observava o Garcia de Resende, se tratou sempre de
gente muito mais propensa a agir do que a fazer conto ou reflexão sobre a sua acção;
porque sua história é provavelmente a mais complexa e confusa de todas as histórias
do mundo; finalmente porque a historiografia tem sido actividade bem exclusiva
do grupo verdadeiramente europeu.
Se não houvesse todo esse
amontoado de escolhos impedindo rota livre, e se, por outro lado, a mentalidade
dominante do mundo não fosse a das causas racionais e a do êxito da prática e
da técnica, todos os milagres apontados para outras nações seriam como coisa
alguma junto deste milagre português. Efectivamente, para outros grupos,
consistiu o milagre em traçarem grandes impérios a partir de coisa alguma, os
impérios que morreram todos eles; ou em, como naquele grego, se atingir uma
universalidade e uma libertação de contingências que são quase uma revelação da
eternidade de Deus, pelo menos naquilo em que Deus é simultaneamente cartesiano
e criador do vinho; ou ainda em nos darem aquela técnica consoladora da vida
humana que se manifesta na geladeira de nove pés e na filosofia da livraria
Alcan.
Mas o núcleo da missão de
Portugal foi o mais estranho de todos: coube-lhe a tarefa de indicar ao mundo
como se revelará no futuro a eternidade de Deus, de um Deus que a um tempo
fantasia e objectiva o mundo. De modo que o trabalho de quem se põe a historiar
os portugueses é bem difícil e avesso ao comum da história: porque se trata de
fazer, juntando-as, uma história do passado e uma história do futuro; uma história
de Deus sendo; uma história de Deus acontecendo e acontecendo fora do tempo. Poderíamos
talvez procurar algum exemplo: quando se diz que os portugueses foram católicos
se comete um erro; porque nunca foram católicos, como adeptos de uma religião
que se fixou no tempo e de um lugar promana quanto às suas directivas; nunca
foram católicos de um catolicismo que se vê como oposto a muçulmanos e hebreus;
nunca de um catolicismo que admite a coexistência de outras religiões, por uma
falsa tolerância. Português foi católico de um catolicismo em que se uniram
intimamente, em pensamento e na prática, a caridade cristã, a esperança
israelita e a fé dos islamitas; de um catolicismo que, inteiramente
sacramental, vê, fora desse campo, os homens como homens; finalmente, de um
catolicismo que, fiel a seu nome, só de admitirá realizado quando for todo o
mundo católico: isto é, só a Deus servindo, não a poderes da Terra. De um
catolicismo que, no passado, só neles houve: mas que será, no futuro, de toda a
gente.
O mesmo diríamos da actividade
científica. Se tivéssemos que marcar duas linhas de marcha para a ciência tal
como o Ocidente a constituiu no mundo, a veríamos endereçada a dois fins ou,
pelo menos, como apresentando duas características bem constantes: uma, a de
ser aristocrática, e portanto anticristã, porque é o domínio dos homens
chamados cultos contra os homens chamados incultos, o domínio dos homens que
acham que percebem as coisas inteiramente afastados dos homens que, acham eles
ainda, não percebem as coisas. A outra, a de ter como objectivo, não o louvor
de Deus, não o espanto perante a complexidade e a harmonia do universo, perante
a sua simplicidade e a sua dificuldade, mas o conhecimento das forças
universais, para que daí nasça a previsão e da previsão o poder. Fáustico
poder, ou diabólico.
Pois ciência portuguesa não foi
nem aristocrática nem divorciada da moral; dela não teriam vindo nem orgulhos
universitários nem bombas arrasando cidades; foi ciência de marinheiros unidos
na comunidade de tripulação de navios; ciência de guarnição de forte cercado
por incréus; ciência de bandeirantes unidos na comunidade da febre. Ciência bem
única: porque a Esfera de Pedro Nunes
tem como parelhas mil páginas da História
Trágico-Marítima. Ciência talvez mais única pelo seguinte: porque é uma das
facetas da moralidade de um D. João de Castro. Ciência que, como a religião, só
deles foi: mas que será do mundo, quando deixarem de pairar sobre nós as
fatalidades do génio europeu.
Juntaríamos a tudo o sentido
missionário dessa nação, que fez de Portugal, na crença dos melhores dos seus,
um povo eleito. Só que um povo eleito não para sobrepor-se aos gentios, não
para destruir os gentios, mas para que ingressassem na Fé comum; ir e
mostrar-se o que se é, para que os outros sejam como somos. E a mensagem que os
portugueses, no meio de todas as contingências históricas e individuais,
levaram aos outros povos, foi sempre a de, na vida civil, serem do município e
dizerem “não” ao rei; a de, na vida militar, isto é, na de servir, aprender
disciplina não na fantasia, mas na prática, o que condenaria, por exemplo, todo
o nosso sistema de ensino; a de, na vida religiosa, combinar ascetismo e
natureza; imagem e sua ideia, saudades da pequena igreja e construção da
Grande. Povo eleito cuja missão se poderia resumir como a de destruir a velha
humanidade pecadora, a si mesmo inconcluso; destruindo-a por um meio muito mais
seguro que o do dilúvio: o da mestiçagem; o ponto exacto em que se resolve a
antinomia de criação e destruição.
Pois quanto a Portugal, a este
Portugal, cometeu a Europa o seu maior crime, porque, invadindo-o de vários
modos, impediu que se cumprisse logo na sua missão. Não tiveram muita importância
nem romanos nem bárbaros porque o mal que puderam fazer foi muito limitado
pelas forças de resistência de um povo ainda jovem, e logo varrido pela vaga de
renovamento dos povos irmãos da África do Norte. O grave veio depois, com o
direito romano que matou os forais; com a Reforma e sua Contra-Reforma, nenhuma
das quais tinha que ver coisa nenhuma com a gente peninsular e sobretudo com a
gente portuguesa; com Carlos V e a germânica prole; com o capitalismo que
principiou a tratar Portugal como uma colónia; com o desastre de se ter
confundido liberdade e liberalismo; finalmente, com ambientes de rato de
sacristia para um povo cujo templo é o mundo.
O que é certo, porém, é a que a Fé
sobrevive à História; o que quer dizer noutras palavras que a vitória final não
é a do Diabo mas de Deus; Santa Maria da Vitória existe e contra Ela, como se
sabe, não prevalecerão as portas do inferno. Um dia, quem fala português
sacudirá [a] Europa, quer no extremo russo quer no extremo americano; e digo
propositadamente quem fala português para não confundir com Portugal, porque não
me parece que a velha Metrópole, depois de tudo o que se passou, tenha forças
para se reerguer e se bater; o novo Portugal vai ser de trópicos e de população
miscigenada; Portugal, quando for de novo, será, não uma terra, com uma cor no
mapa da península, mas uma ideia, com uma voz em cada fuso horário. A massa de
sua gente estará não entre Beira e Mar, mas entre o Acre e Timor e virá do Rio
Minho ao arroio Chui.
Tudo depende agora não de
Portugal, mas do Brasil. E não estou falando de política, porque aí dependerá
dos dois, e de outras vozes que poderão vir de Angola ou poderão vir da Índia e
às quais se tem de dar a liberdade e igualdade das antigas cortes. Mas estou
falando do que importa: de religião, ciência e comportamento humano. Aí é o
Brasil, firmado no seu território, nos milhões de seus homens, na sua posição
no mundo, na sua força criadora, que tem de dar a última palavra e trazer ao
universo e mensagem de salvação por que ele anseia. O que o Brasil só poderá
fazer se virar as costas à Europa e sua falsa cultura e vir seu verdadeiro
campo de acção nos irmãos que o esperam pela África e na Ásia: se, firmado em
si próprio, for universalista, mas não de zonas temperadas; se tiver a audácia,
que é a mais difícil, para nações e para homens, de ser fiel a si próprio; o
Brasil será o Portugal que não se realizou, ma medida em que for,
realizando-se, Brasil.
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