Se o marinheiro se arrancar às colunas de Hércules e se perder em delírios mediterrânicos, sonhará de serpentes, aninhadas num mui belo cais de luz, de brisa solta, ares primaveris e amenas vozes. Península revestida de primordialidade, de origem e fim de mundo, canto de criança, olhar último, beleza breve e para sempre inscrita no pó.
Sonham, as serpentes, também elas, no seu bálsamo translúcido de olhar sanguíneo, o sonho do homem e do archote, da inteligência heróica que esculpe a civilização com mãos de ferro e mel, e o seu reino de barbárie acaba e começa no amor. Amavam, antes mesmo do advento do objecto amado, e permanecerão depois da clareira luminosa ser areia abrasadora e deserto.
O dever da primeira serpente é descortinar e sibilar os ventos, e o dever do homem é segui-los, o dever da segunda serpente é seguir o homem. Assim edificou Ulisses a Cidade das Belezas do Mundo *, como da flor, no ventre das correntes do nosso astro, gera o pólen.
O dever da primeira serpente é ser forma e beleza, é ser veneno e morte, o dever do homem é contemplar a beleza e sobreviver um segundo homem para sempre. O dever da segunda serpente é ser Terra e Reino, o dever do segundo homem é ser Estátua e Coroa.
* A lenda conta que Lisboa foi fundada por Ulisses, que, perdido no mediterrâneo, encontrou a Terrae Ophiussa, Terra das Serpentes, onde aportou. Apaixonando-se pela beleza da natureza neste local, decidiu criar a mais bela cidade. As serpentes, conduzidas por uma rainha metade serpente metade mulher, procuraram espantar os homens para fora das suas terras. Mas Ulisses, não desistindo e desafiando o seu inimigo, ganhou a admiração e a paixão da rainha. Esta, feiticeira enfeitiçada pelo heroísmo do homem, permitiu-lhe a fundação da cidade na condição de que Ulisses permanecesse para sempre em Ulisseia. Ulisses parece viver uma relação com a rainha e mais tarde envia um homem parecido consigo mesmo ao seu encontro, distraindo-a enquanto foge por mar. Quando a rainha se apercebe mata o homem e, procurando perseguir Ulisses pelo mar, dado o esforço transforma-se em sete colinas.
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