I
Trata-se de iniciativa elogiável o trabalho de organização da obra do pensador português Eduardo Lourenço encetado pela professora Maria de Lourdes Soares, ao escolher entre a sua imensa produção textual as mais significativas páginas que têm o Brasil como tema, reunidas em Do Brasil: Fascínio e Miragem (Lisboa. Gradiva, 2015). São textos de diversas modalidades (ensaio, recensão, discurso, diário, entrevista e até carta) que abrangem o período de 1945 a 2012 e contemplam áreas como Filosofia, Ensino, Literatura, Cinema e as nem sempre pacíficas relações entre Brasil e Portugal.
Esses textos correspondem a cerca de um terço daqueles que integrarão o livroTempo Brasileiro a sair na série Obras Completas de Eduardo Lourenço, que vem sendo editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, pela qual já saíram três volumes – Heterodoxias (2011), Sentido e Forma da Poesia Neo-realista e outros ensaios (2014) e Tempo e Poesia (2016).
Como observa a professora no prefácio que escreveu para este livro, há mais de seis décadas que “Eduardo Lourenço pensa o Brasil sem perder de vista que reflete sobre a realidade movente de um país multifacetado”. De fato, desde que veio para o Brasil, ainda um jovem de vinte e cinco de idade para trabalhar como professor convidado na Universidade Federal da Bahia, não deixou de se preocupar com o futuro deste país que, ao longo de sua história, tem alternado fases de euforia desmedida, como aquela que pode ser resumida como o “país do futuro”, título de um livro (ensaio) de 1941 do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), e de pessimismo desenfreado como a de agora em que legiões de jovens e aposentados não veem outra saída para as suas vidas que não seja o portão de embarque dos aeroportos de Cumbica ou do Galeão.
II
Um dos mais instigantes artigos é “Sobre Brasil e África: outro horizonte” em que analisa o livro do historiador brasileiro José Honório Rodrigues (1913-1987) que leva este título, publicado em 1961, uma espécie de libelo contra o colonialismo português, que teria, segundo o professor, o indisfarçável propósito de fundamentar ideologicamente a ação diplomática do Brasil no continente africano, que se deu ao tempo do governo de Juscelino Kubitschek (1902-1976), que compreende o período de 1956 a 1961. Ou seja, com uma “imagem de povo próximo da África”, o Brasil tentaria aparecer como padrinho do processo de descolonização que à época já se afigurava inevitável.
Obviamente, essa estratégia colocava toda a culpa histórica pelo tráfico de escravos nas costas dos portugueses, escamoteando, porém, que eram os fazendeiros da América portuguesa – os brasílicos – e, depois, do Brasil Império, que compravam os negros, incrementando o comércio de carne humana, e que eram as elites africanas que vendiam nas praias os adversários derrotados em guerras internas. Mais: esquecendo que os portugueses não entravam no interior da África, onde o domínio dos negócios pertencia em absoluto aos chefes (sobas) africanos ou aos príncipes mouros (os chamadosxerifes que se diziam descendentes de Maomé), que dominavam o tráfico de escravos muito antes da chegada dos lusos ao continente. E que, na África Oriental, bem antes dos portugueses, os franceses já faziam o tráfico de escravos entre Moçambique e suas ilhas do Índico.
Claro está que o colonialismo, tirando-se as suas numerosas vítimas involuntárias, não é uma história de bandidos e mocinhos, mas antes, como diz Lourenço, “uma máquina infernal cujos traumatismos só com dificuldade se reabsorvem”. E que o Brasil até hoje se recusa a admitir que, durante mais de três séculos, a sua realidade e dinamismo histórico foram resultado da “ação e presença portuguesas enquanto ação colonial e colonialista”. Como exemplo, Lourenço lembra que, até hoje, os historiadores não veem de maneira uniforme a História da Literatura Brasileira – para uns, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, tudo o que foi escrito em terras brasileiras seria literatura brasileira, enquanto, para outros, tudo o que se escreveu até a separação em 1822 é literatura colonial.
O ensaísta também ironiza os escritores brasileiros do século XIX que, sob a maré romântica, embora “descendentes dos destruidores de índios” – quer dizer, dos portugueses tornados “brasilienses” – fizeram um apelo ao mito do índio “para fugir a uma paternidade e a uma responsabilidade que obscuramente contrariava o desejo e a vontade da jovem nação independente”. Como se os brasileiros estivessem desde sempre no continente americano e fossem autóctones, nascidos de si mesmos. Ou, então, como tentou defender José de Alencar (1829-1877) no romance Iracema (1865), que o brasileiro seria metade-português e metade-índio, como Moacir, o filho da índia Iracema com o invasor português Martim.
III
Em outro texto, “Os príncipes”, de 1992, Lourenço, apesar de admitir um antiportuguesismo latente em certas correntes do pensamento brasileiro, reconhece o carinho especial com que a historiografia do Brasil trata D. João VI (1767-1826) que, a rigor, como príncipe regente, fez da colônia, mais especificamente do Rio de Janeiro, o centro de um poder imperial, invertendo o papel que Portugal desempenhara até 1808.
Na verdade, o que é hoje o Brasil muito deve à Coroa que lhe deu, em 1822, pelas mãos de um príncipe luso, a autonomia sem qualquer conflito, ao contrário do que ocorrera poucos anos antes com México, Argentina e Peru que conseguiram a independência a custo de muito sangue. Aliás, mais para a frente, se a república nascida de um golpe militar, em 1889, tivesse saído antes, certamente, a antiga América portuguesa não seria o que é hoje, mas, sim, a exemplo da América hispânica, um rol de pequenas nações nascidas das ambições de caudilhos regionais.
Mais adiante, em entrevista a Rui Moreira Leite, em 2000, que consta deste livro como anexo, Lourenço condena a teoria do luso-tropicalismo do sociólogo Gilberto Freire (1900-1987), até hoje incensada em certos círculos do Brasil, acusando-a de ter servido como caução ideológica para o regime de António de Oliveira Salazar (1889-1970) – tanto que ele foi o único escritor que o ditador recebeu em palácio – em sua presumível tentativa de fazer em Angola e Moçambique uma “descolonização à brasileira”, ou seja, com a manutenção no poder nas mãos de uma elite branca ou já miscigenada, para evitar o recrudescimento da guerra colonial ou guerra de libertação (expressão utilizada pelos africanos) que se daria entre 1961 e 1974.
Como se sabe, o luso-tropicalismo defende que os portugueses teriam uma especial capacidade de adaptação aos trópicos, não por interesse político ou econômico, mas por empatia inata em razão de sua própria origem híbrida ou de seu contato íntimo com mouros e judeus na Península Ibérica, que redundaria na miscigenação e interpenetração de culturas. Mas, hoje, essa teoria já não é levada muito em consideração, até porque, como diz Lourenço, “esse discurso acaba por ter uma leitura de coisa racial, logo, racismo”. Aliás, essa condenação ao luso-tropicalismo Lourenço já o fizera em artigo de 1961, “A propósito de Freyre (Gilberto)”, também incluído neste livro, considerando-o “um nefasto aventureirismo intelectual, incoerente e falacioso”.
IV
Eduardo Lourenço, nascido em São Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida, distrito da Guarda, província da Beira Alta, em 1923, concluiu a Licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa em 1946, assumindo em seguida as funções de professor assistente, até 1953. Desse ano até 1958, exerceu as funções de leitor de Língua e Cultura Portuguesa nas universidades de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier.
Foi ainda leitor nas universidades de Grenoble e Nice, na França. Nesta última universidade, foi maitre-assistant, cargo que manteve até a sua jubilação em 1989. Na França, terra natal de sua esposa, Annie Salomon (1928-2013), viveu por seis décadas. Pela editora Gallimard, de Paris, lançou Une Vie Écrite.
Seu primeiro livro, Heterodoxia I, é de 1949. Com mais de 40 livros publicados, é autor de O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga (1955),Heterodoxia II (1967), Sentido e Forma da Poesia Neo-realista (1968),Fernando Pessoa Revisitado – leitura estruturante do Drama em Gente, (1973),O Labirinto da Saudade – psicanálise mítica do destino português (1978), Fernando, rei da nossa Baviera (1986), Nós e a Europa ou as duas razões(1988), A Europa Desencantada – para uma mitologia europeia (1994), O Esplendor do Caos (1998), Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade (1999), A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia(1999), As Saias de Elvira e outros ensaios (2006) e Paraíso sem Mediação (breves ensaios sobre Eugénio de Andrade (2007), entre outros.
No Brasil, a presença de seus livros é ainda restrita, embora tenha conquistado o Prêmio Camões em 1996. Na sequência, a Companhia das Letras, de São Paulo, publicou Mitologia da Saudade (1997) e A Nau de Ícaro (2001). Em 2016, ganhou a Prêmio Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural. É doutor honoris causa pelas universidades do Rio de Janeiro (1995), de Coimbra (1996), Nova de Lisboa (1998) e de Bolonha (2006). De 2002 a 2012, exerceu as funções de administrador não-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi adido cultural na Embaixada de Portugal em Roma. Adelto Gonçalves - Brasil
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Do Brasil: Fascínio e Miragem, de Eduardo Lourenço, com organização e prefácio de Maria de Lourdes Soares. Lisboa: Gradiva Publicações, 1ª edição, 269 páginas, 2015, 13,50 euros. E-mail: geral@gradiva.mail.pt Site: www.gradiva.pt
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