Decerto, uma das grandes
questões que se levantam na apreciação de qualquer obra de arte é a inevitável
dessintonia entre o olhar do seu criador e de quem aprecia a obra. Como se
refere neste livro de Luís de Barreiros Tavares (Amadeu de Souza-Cardoso: a Força da Pintura, Edição MIL, 2017),
citando-se Paul Klee: “Será que um quadro nasce de um gesto único? Não,
constrói-se peça por peça, tal como uma casa. E o observador consegue apreender
o quadro com um único olhar? (Muitas vezes sim, infelizmente.)” (p. 71).
No caso da obra plástica de
Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), essa dificuldade parece aumentar, desde
logo pela própria posição do criador, auto-proclamadamente fora de qualquer
escola ou corrente que pudesse, de alguma forma, orientar o nosso olhar: “Eu
não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a
originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista? De
tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.” (p. 40).
Se há, porém, algo que
transparece na sua obra é a força de um carácter, de um temperamento – como
igualmente se refere neste livro, dando-se voz ao próprio Amadeo: “Ninguém
deixa de fazer uma obra de arte intensa por falta de técnica mas por falta de
outra coisa a que se chama temperamento. Enfim, para mim os tais artistas de
técnica acabaram” (p. 68). Amadeo parecia estar em guerra permanente com o
mundo – no livro, alguém refere mesmo que ele se havia preparado para uma certa
exposição “como quem se prepara para a guerra” (p. 57). Daí, também, a alusão a
uma permanente insatisfação: “Permanentemente insatisfeito; insatisfeito entre
Manhufe e Paris […]; só está bem onde não está” (p. 29).
Esse assumido desprezo pelos
“artistas da técnica” tê-lo-á levado a adoptar, pelo menos nalguns casos, uma
“técnica propositadamente rude e tosca” (p. 56), como escreveu o autor deste muito
interessante livro, Luís de Barreiros Tavares. Poder-se-á, a este respeito,
estabelecer uma ponte entre Amadeo de Souza-Cardoso e o seu conterrâneo
Teixeira de Pascoaes (1887-1952), pelo menos na visão do seu mais insigne
hermeneuta - falamos de José Marinho (1904-1975) -, bem expressa no livro
postumamente publicado Teixeira de
Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade (“Obras de José Marinho”, vol. VI,
INCM, 2005).
Nesta sua obra, com efeito,
José Marinho valorizou a poesia de Teixeira de Pascoaes por ser “autenticamente
original” – como ressalvou, “no sentido mais puro, como Leonardo Coimbra
assinalou: original porque vem da origem” (p. 243; cf., igualmente, ibid., pp. 289 e 398) –, não por ser
“artista”. Muito pelo contrário – chegou a qualificá-la como “a poesia menos
‘artista’, a menos latina e ladina, a menos francesa” (ibid., p. 249). Algo que, de resto, já havia acontecido em relação
a outro grande poeta: Guerra Junqueiro (1850-1923), igualmente por José Marinho
considerado como “original” e “pouco, ou nada, artista” (cf. “Obras de José
Marinho”, vol. V, INCM, 2003, p. 558). Em suma, na arte como na vida, o que mais
importa é a força do carácter, do temperamento.
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1 comentário:
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