A última vez que fui à
Cooperativa Árvore senti a falta do meu amigo José Rodrigues – mas felizmente
encontrei outro querido amigo, Albano Martins, e lembrei-me da extraordinária
versão de «O Cântico dos Cânticos de Salomão», a partir do grego, com dez
litografias originais do inesquecível escultor, gravadas em pedra de Baviera. É
uma obra única, editada pela Cooperativa Árvore por ocasião dos seus 25 anos
(Porto, 1988), integrada na coleção «Moinho de Vento», dirigida com a qualidade
inconfundível do nosso primeiro editor, José da Cruz Santos. E se é certo que,
como habitualmente, este se limitou a enviar um belo texto, a verdade é que
todos recordámos, como memória viva, o querido José Rodrigues. A obra é
raríssima e está há muito esgotada, sendo disputada nos alfarrabistas. Hoje
merece uma referência muito especial, ao homenagearmos o escultor e o amigo, e
ao invocarmos também a Cooperativa Árvore e o talento e a sensibilidade do
editor fantástico da Oiro do Dia ou da Modo de Ler.
«A cidade assemelha-se a um bloco de granito onde
corre sempre um raio de luz». Não conheço melhor definição desta querida cidade
do Porto do que a de José Rodrigues, o escultor, o artista, o intérprete
extraordinário deste lugar único. E hoje como símbolo do Porto temos o cubo da
Ribeira, que se tornou uma referência adotada como sua pela gente da cidade.
«Pensei numa coisa diferente dos temas a que sempre recorria – estátuas de
mulheres nuas, bombeiros ou cavalos. E por que não um cubo com um jacto de água
de forma a dar a ideia de que esse pequeno movimento pudesse pôr em suspenso
aquelas duas toneladas de bronze». E aqui está o símbolo da vontade, da
inteireza, da determinação de uma cidade invicta.
José Rodrigues é um amigo que muito continuo a admirar.
Mais do que o escultor, o desenhador e o gravador talentoso, que conheci
longamente, foi sobretudo um educador. Encontrei-o sempre nessa atitude sábia e
aberta do artista que aprende. De facto, é essa inesgotável qualidade que
sempre lhe admirei. O autêntico educador é aquele que faz da relação humana um
permanente ato de troca. Um dia, estávamos juntos, e a Luísa Dacosta lembrou-o,
na cooperativa Árvore, o melhor sítio possível. E que é a aprendizagem senão
isso mesmo? Sendo muito generoso, encontrei-o muitas vezes na dramática
situação de ter sido traído na sua capacidade de dar tudo. Em tantas
circunstâncias, percebi bem o significado do dito popular «por bem fazer mal
haver».
Apesar de todas as dificuldades e vicissitudes,
vi sempre José Rodrigues continuar no seu caminho de coerência e de genuína
entrega à arte e aos outros. Para ele não fazia sentido o conhecimento e a
compreensão se não fossem partilhados, se não houvesse dom e troca. Por isso,
admirei nele, para além do talento, a capacidade sábia de fazer do ato de
aprender um movimento biunívoco, em que a humanidade e a dignidade se entregam
e se realizam.
Era vê-lo a dialogar com os jovens, a transmitir
os seus saberes, sempre com a qualidade de ouvir e de verificar as dificuldades
e as virtudes. O seu olhar vivo, atento, perscrutador, como o de uma águia das
montanhas que apreende a beleza natural, mas que entende, a um tempo, o
conjunto e os pormenores, demonstrava essa capacidade única de perceber e de
transmitir, de apreender e de responder, de olhar e de ver. Um escultor de exceção,
como José Rodrigues, aprendia em tudo as formas, os espaços, as relações, as
proporções, os movimentos, a tensão da vida, a agonia, o êxtase, a coerência e
a contradição. Nele, de facto, sentia-se a vida como combate e como ligação
íntima à terra – com um especial culto do feminino e da Mátria. E que é a
escultura, desde o barro ao bronze, senão a capacidade sagrada de criar e de
construir, como Deus faz no livro do Génesis? O escultor reedita esse movimento
fundador de pegar no barro e de lhe dar vida. O olhar vivo e desperto liga-se
ao dom divino de moldar a terra e de lhe dar um sopro de alma.
José Rodrigues nasceu em Luanda, vem de África,
do lugar das origens da humanidade, e é nortenho com os pés assentes na terra,
no húmus, e com a imaginação nas nuvens (no melhor sentido da imagem).
Tornou-se um dos símbolos da cidade do Porto, a que me ligam raízes familiares
antigas, e nunca esquecerei nas Águas Férreas, em casa que foi da minha família
e hoje é do meu Amigo Conselheiro Santos Serra, a homenagem nacional a Oliveira
Martins, em 1994, cuja memória ficou perpetuada por uma obra sua, baseada na
ideia democrática por excelência da justiça para todos. E, de facto, é esse
amor ao futuro, construído pela vontade autónoma e solidária das pessoas, que
constitui o ideário de José Rodrigues, em cuja obra se sente amiúde a
influência de Antero de Quental. Ele costumava dizer-me: «A vida tem de ser uma
forma de poesia, senão tornámo-nos uma espécie de matraquilhos».
José Rodrigues tem uma
obra vastíssima e inconfundível. Insisto
em que admiro sempre, e antes de tudo, o educador e que é ele que hoje desejo
homenagear. Como um dos fundadores da Cooperativa Árvore e como um dos
promotores da Bienal de Vila Nova de Cerveira demonstrou, com vontade firme e
solidária, que o artista não pode viver fora da relação com os outros. É a
entrega, o exemplo e a aprendizagem que têm de estar sempre presentes – e isso
é especialmente importante para o escultor.
E como poderemos entender a cultura portuguesa
contemporânea, numa encruzilhada ente herança e inovação, se não lembrarmos o
diálogo do escultor com os seus colegas artistas, como «Os Quatro Vintes», em
que, com ele, Armando Alves, Ângelo de Sousa e Jorge Pinheiro representam o
impulso no sentido de um renascimento cultural, em que ciclicamente a cidade do
Porto é tão pródiga?
De facto, para José Rodrigues a arte não tem
sentido sem uma intensa relação humana. Em cada diálogo que se estabelece entre
pessoas comuns há um fluxo criador, que no caso dos artistas torna-se mais intenso
e transformador. O projeto da Fábrica Social em Santo Ildefonso é a procura do
sentido humaníssimo, que na cidade do Porto tem ainda mais significado, se nos
lembrarmos do que Jaime Cortesão disse que é a única cidade-Estado da nossa
cultura, o lugar de onde houve nome Portugal. E, sob o olhar do escultor-sábio,
a cidade assemelha-se, cada vez mais, a um bloco de granito animado por um raio
de luz.
1 comentário:
Excelente texto de apreciação humana. Espelham a alma e o espirito do seu autor e, de quem invoca.
Homens que na vida deixam caminhos de esperança.
Bem hajam
Luisa Timóteo
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