A ocasião mais significativa
em que me cruzei com Mário Soares ocorreu em 2011, na Academia das Ciências de
Lisboa. O MIL: Movimento Internacional Lusófono ia entregar o Prémio
Personalidade Lusófona a Ximenes Belo e, sem que estivesse à espera disso,
Mário Soares apareceu na sessão. Adriano Moreira, então Presidente da Academia
das Ciências, convidou-o para a mesa de honra.
Quando chegou a minha vez de
intervir na sessão, justificando a entrega do Prémio, olhei para Mário Soares e
tive um momento de hesitação. No meu discurso, enaltecia longamente a
personalidade de Ximenes Belo e, mais longamente ainda, a personalidade do povo
timorense. Como então fiz questão de frisar, aquele prémio era entregue a
Ximenes Belo e, na sua pessoa, a todo o povo timorense: no essencial, por ter
conseguido resistir à brutal ocupação indonésia e, depois da libertação, por se
ter integrado na CPLP: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, reafirmando
assim a sua condição de país irmão lusófono.
A par disso, tecia também
algumas considerações sobre todo o processo de descolonização. E seria
hipócrita não o fazer: a ocupação indonésia de Timor-Leste não aconteceu no
vazio. Foi, ao contrário, a última etapa de um processo catastrófico que se
iniciou com uma descolonização nada exemplar, que propiciou inclusivamente uma
guerra civil. E de pouco vale alegar aqui que as guerras civis que ocorreram em
Timor-Leste e noutros países então descolonizados foram uma consequência da
Guerra Fria (entre os Estados Unidos da América e a União Soviética).
Decerto, isso é verdade.
Simplesmente, a Guerra Fria já existia muito antes do processo da
descolonização. A sua existência deveria antes ter levado a um cuidado
redobrado, não a uma descolonização apressada, para dizer o mínimo. Feita como
foi, o resultado foi catastrófico – e não apenas em Timor-Leste. Países como
Angola e Moçambique ainda hoje se procuram recompor de uma guerra civil
particularmente sangrenta. E nos países em que não houve propriamente uma
guerra civil, logo se instauraram ditaduras de partido único, o que não deixa
de ser também tragicamente irónico quando se fala de um processo de
descolonização que pretendia ser um processo de libertação. Face a tudo isso,
insistir na tese da “descolonização exemplar” constitui uma piada de (muito)
mau gosto.
Sendo que, no caso de
Timor-Leste, há responsabilidades acrescidas. No texto que levava escrito,
falava disso, aludindo até a uma tristemente célebre passagem de uma obra de
Mário Soares (“Portugal amordaçado”, 1973), em que se caracterizava Timor-Leste
como “uma ilha indonésia que não tem grande
coisa a ver com Portugal”. No meu discurso, porém, preferi passar por
cima dessa passagem. Preferi pensar que a presença de Mário Soares na sessão
tinha sido uma forma de o próprio se retractar dessa página mais negra dessa sua
obra, senão mesmo de toda a sua vida. Na hora da sua morte, prefiro pensar que
foi isso mesmo que aconteceu. É mais do que tempo de virarmos, todos, essa
página.
1 comentário:
Os homens enquanto não têm no coração um espaço reservado a Cristo só fazem asneiras. E fazem-nas convencidos que estão a ser uns heróis. Paulo Almeida.
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