1. A «Ordem de Direito» é uma «utopia
positiva».
Devemos começar por caracterizar e distinguir
entre «Utopia Negativa» e «Utopia Positiva». Distinguiremos estas duas formas
de «Utopia» do seguinte modo: a primeira é a negatividade (ou a negação) total
e radical de todo o positivo real aí existente, em termos sociais, culturais e
civilizacionais; contrapõe-se à realidade positiva pela sua negação e contradição
absolutas e nada oferece como alternativa ─ é o «Nada», o «Não», de tudo o que
existe: a «Grande Recusa», lhe chamou HERBERT MARCUSE. Um exemplo é, quanto a
nós, sem dúvidas, a utopia marxista, ou as que, de algum modo, se vão, ainda
hoje, nela filiar, como, por exemplo, o «relativismo radical anti-normativo» que está aí. Já a «Utopia
Positiva» tem uma certa positividade, de duas formas: por um lado, ela já
existe, positivamente, naquela superstrutura civilizacional que FRIEDRICH HAYEK
designou como o «Métaconsciente» cultural de uma dada Civilização ─ ou o que
SIGMUND FREUD designou como o «Super-Eu Cultural»; o que KARL POPPER chamou de
o «Mundo 3»; e o que NICOLAI HARTMANN chamou de «Noosfera», ou o «Mundo dos
Valores». E, estando acima e para além da mera realidade social imediata, mas em
consonância com ela e não a contradizendo, ou sem a negar (a outra forma da sua
positividade), por outro lado dirige-lhe «exigências normativas»: ou porque os
seus Valores podem não se ter realizado de todo, ou todos; ou serem atraiçoados
e negados pelas vicissitudes da vida corrente; ou só se realizarem
parcialmente, ou defeituosamente ─ e é nesta «exigência normativa» à realidade
social e civilizacional e positiva corrente e quotidiana que está o «diferencial»
de um «Mais», ou de um «Excesso», que faz dela, ainda, uma «Utopia». Por outro
lado, ela tem de ser permanentemente «construída» e «re-constituída», ou feita
(re)-nascer pelas pessoas, para se manter válida e positivamente vigente ─ i.
é, para serem mantidos o seu alcance de exigência e a sua memória presente.
Autores como JONH RAWLS falam de uma «Utopia Realista»; e ANTHONY GIDDENS fala
de um «Realismo Utópico». Isto porque, muito do que deve ser mantido como exigência
normativa à realidade, está já aí: nos Valores e dimensões da Cultura vigente e
já existente e alimentando esta.
2. A «Ordem de Direito» faz parte do «Métaconsciente» cultural da
nossa «Civilização Greco-Romana,
Judaico-Cristã e Europeia ou Ocidental e Atlântica»: i. é, daquela superstrutura
de valores, princípios, pré-concepções, categorias, conceitos e quadros mentais
que, não sendo sempre inteiramente «consciente», todavia condiciona muito das
nossas condutas, práticas e atitudes comuns. É assim, também, uma «Utopia
Normativo-Cultural e Jurídico-Política Aberta», que, simultaneamen-te,
pressupõe e aponta para uma correlativa «Comunidade de Direito».
3. A «Comunidade de Direito» e a «Ordem de Direito» são, pois, uma «Comunidade
de Pessoas» e uma «Ordem entre Pessoas» ─ as quais são, pelas primeiras,
pressupostas e sem as quais elas não existiriam. E a pré-eminência, soberania e
dignidade normativas do «Direito» são, funda-mentalmente e antes do mais, uma
pré-eminência, soberania e dignidade «Éticas» das «Pessoas».
O valor primeiro da «Comunidade
de Direito» e da «Ordem de Direito» é, portanto, o valor da «Pessoa Humana
Individual», concreta, singular, diferenciada e individuadamente considerada.
Dele decorem os valores:
a) – Da «Dignidade Humana»: a «Humana Dignitas» que nos foi legada
pelo Cristianismo e de que nos falou IMMANUEL KANT, justamente, como «Dignidade»
de um «Sujeito Ético»;
─ da «Autonomia»: que é, sobretudo, a autonomia
(moderna) para o fundamento, para o compromisso e para a vinculação consentida
─ a autonomia «ética» e/ou «moral», ou seja, o depender, acima de tudo, da sua
própria «Lei Interna»;
─ da «Liberdade», como liberdade
ontológica e abertura do homem ao Ser, seja como liberdade liberal negativa,
seja pelas liberdades positivas (liberais não-participativas e
democrático- -participativas);
─ e da «Responsabilidade»: a
qual, particularmente nas formas relacionais da liberdade, consiste na
auto-vinculação para a heteronomia e para «algo» de exterior que nos prende e
nos compromete; embora não deixe de existir, desde logo, como «responsabilidade
perante si próprio» e pela «auto-conformação da própria personalidade».
b) ─ Da «Natureza Humana Comum e Universal», entendida como «constituição
ontológico-fundamental» do ser
humano e como «conceito de ordem» e uma «complexidade integrada» e não como um «conceito
de coisa/substância» (MARTIN HEIDEGGER), bem como da situação do «estar--em-comunidade»,
deriva ainda o valor da «Igualdade» ─ desde logo como igualdade «radical» ou «ontológica»
entre as pessoas; pois, a um nível já «ôntico», podem subsistir desigualdades
e/ou diferenciações, quer «verticais» (ou «de mérito»), quer «horizontais» (ou
«idiossincráticas»).
Da «Igualdade», assim entendida,
decorrem os princípios:
─ de uma igual dignidade e
liberdade sociais;
─ de uma igualdade de «estatutos
de cidadania» e/ou de «direitos humanos fundamentais», quer como «direitos universais
de cidadania», quer como «direitos de cidadania universal»;
─ de uma igualdade perante, no e
para o Direito;
─ e de uma subsidiária e
complementar «igualdade equitativa de oportunidades» (JOHN RAWLS);
─ bem como o valor
jurídico-político da «Democracia», com a sua «igualdade democrática»; mas que,
dadas as desigualdades «verticais» ou «de mérito» acima referidas (v.g., as «aristocracias»),
exige ser integrada num mais complexo e realista «regime de Constituição Mista»;
todavia, ao seu nível próprio, a «Democracia» implica sobretudo o valor da «Participação»,
bem como deveres sociais concretamente contextualizados de «Solidariedade» e de
«Corresponsabilidade» comunitárias.
4. Mas há ainda um outro conjunto de valores que integram a «Ordem
de Direito»; são eles:
a) ─ A «Verdade», como «revelação» e «desocultamento» (alétheia)
primeiro (HEIDEGGER); e, depois, como «adequação do intelecto às coisas» (fórmula
clássica). Ela implica a «Verdade do Homem» e a «Verdade de cada homem»; a «Verdade
da Lei Moral Universal» (KANT) e a «Verdade Moral de cada Pessoa»; bem como a «Verdade
intrínseca da Natureza das Coisas», qualquer que possa ser, ainda hoje, o
sentido útil desta expressão. Todavia, ela é sempre um Ideal Méta-Referencial,
que está sempre para além das «verdades», virtual e pontualmente alcançáveis,
historicamente; ela é, como pura Idealidade, um valor Meta-Histórico e Meta-Empírico.
b) ─ A «Justiça», que é o valor normativo específico e
sobredeterminante do Direito, como a exacta e rigorosa correspondência,
proporção e adequação entre o «Ser» e o «Dever-Ser», por forma a que nem o Ser
repouse, sempre e só, permanentemente, «em si», num total e acabado imanentismo,
mas que se «abra» e se «transcenda» em direcção ao Dever-Ser; e por forma a que
este não faça exigências excessivas, desproporcionadas, incomportáveis e
insuportáveis ao Ser, violando a sua «natureza essencial própria». A «Justiça»
não é assim só «Equidade» (JOHN RAWLS); nem mesmo «Igualdade Complexa» (MICHAEL
WALZER); nem, muito menos, estrita «igualdade» (=igualitaris-mo); mas,
essencialmente, «Proporção»: «hominis ad hominem proportio» (DANTE).
c) ─ A «Liberdade», nos termos já vistos, como liberdade liberal
negativa e liberdades positivas (liberais não-participativas e liberdades
participativas). E da qual disse HEGEL que «o Direito, portanto, é, em geral, a
Liberdade como Ideia» e o «Reino da Liberdade Realizada», já que ele é o «reino
da vontade livre» e, por isso, «em geral, algo de Sagrado».
d) ─ A «Segurança»: como ordem efectiva, unidade integrada dessa
ordem, institucionalização, estabilidade e continuidade, certeza jurídica,
exigência de positividade ou vigência, eficácia, Etc.
e) ─ E, finalmente, a «Paz»: no mínimo, como «ausência negativa de
tensões e conflitos»; no óptimo, como «convergência, harmonia positiva e
compossibilidade de posições e vontades», i. é, como «Concórdia», à qual se
referiu sistematicamente JOÃO PAULO II.
5. Há ainda outros valores ou princípios que integram a «Ordem de
Direito», como: o Estado-de-Direito;
todos os valores ou princípios jurídicos fundamentais; o princípio (cristão) da
subsidiarie-dade e o princípio (liberal) da descentralização, da
desconcentração e da regionalização administra-tivas do Estado; o princípio da
economia descentralizada, plural, concorrencial, aberta e social de Mercado; o
princípio de um pluralismo razoável (a reasonable pluralism: JOHN RAWLS); os
direitos universais de cidadania e os direitos de cidadania universal; o
princípio da constitucionalidade e da jurisdicidade de todos os actos do
Estado; o princípio da separação e da interdependência dos poderes do Estado e
da sua vinculação à Constituição, à Lei e à Ordem de Direito; o princípio da
autonomia, independência e imparcialidade do Poder Judicial; o princípio da
democracia económica, social e cultural; o princípio da separação e da
tolerância recíprocas entre o Estado e as várias religiões; outros princípios
de solidariedade, de corresponsabilidade e de confiança e inclusão sociais;
Etc.
6. ─ É esta, quanto a nós, a «Axiologia Transpositiva», ou o «Paramount
Law», que especificam, exigindo, uma qualquer Ordem Civilizacional — e, hoje, a
planetária «Ordem Cosmopolita Global» (A. GIDDENS) — como uma propriamente dita
«Ordem de Direito».
VIRGÍLIO CARVALHO (Dr.).
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