Regressámos recentemente de uma
curta viagem de quinze dias a Luanda, Angola, aonde não íamos há já 35 anos, e
ficámos surpreendidos com várias coisas.
Designadamente, e em primeiro
lugar, com a experiência de uma sociedade que, apesar dos seus visíveis e
evidentes dificuldades e bloqueios, se afirma como uma sociedade jovem,
dinâmica e de progresso imparável.
Depois — e é este o aspecto que
queríamos aqui evidenciar —, com o facto de a sua Constituição, recentemente promulgada,
na sua versão actual, aos 5 de Fevereiro de 2 010, ser muito mais liberal do
que a portuguesa, na redacção que esta ainda mantém e apesar de todas as suas
periódicas revisões.
Assim, em nenhum lugar, nem no
seu Preâmbulo, nem ao longo de todo o texto constitucional, se fala, na
Constituição angolana, em «socialismo», ou algo similar. Isto,
surpreendentemente, num país onde ainda é dominante um partido de histórica
filiação marxista-leninista-estalinista ortodoxa. E isto, apesar de se dar toda
a ênfase, logo no seu artigo 1º., ao «objectivo fundamental» da «construção de
uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e
progresso social». E de se afirmar, no artigo 2º., que: «1. A República de
Angola é um Estado democrático de direito que tem como fundamentos a soberania
popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e
interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de
organização política e a democracia representativa e participativa. 2. A
República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do
homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados, e
assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo,
executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas
singulares e colectivas».
Depois, e ainda em sede do Título
I, «Princípios Fundamentais», logo no artigo 14º. se antecipa que: «O Estado
respeita e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e
a livre iniciativa económica e empresarial exercida nos termos da Constituição
e da lei» — o que não encontra paralelo, com estes alcance e importância, na
Constituição portuguesa, mesmo antes do «direito ao trabalho».
Aliás, o «direito à propriedade
privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei» é garantido
logo em sede de «Direitos e Deveres Fundamentais» (Título II) e de «Direitos, Liberdades
e Garantias Fundamentais» (Capítulo II, do Título II, Secção I) — artigo 37º.
De resto, no mesmo local, artigo 38º., é afirmado que: «1. A iniciativa
económica privada é livre, sendo exercida com respeito pela Constituição e pela
lei»; e que «2. A todos é reconhecido o direito à livre iniciativa empresarial
e cooperativa, a exercer nos termos da lei».
Assim, é que é só no Capítulo
III, do Título II, «Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais», que
encontramos o artigo 76º. que diz: «1. O trabalho é um direito e um dever de
todos» — e nas demais alíneas se regula o «direito ao trabalho».
Na «Organização Económica,
Financeira e Fiscal», Título III, Capítulo I, artigo 89º., mais uma vez se
reconhece, como «princípios fundamentais», além do «papel do Estado de
regulador da economia e coordenador do desenvolvimento económico nacional
harmonioso, nos termos da Constituição e da lei», ainda a «livre iniciativa
económica e empresarial, a exercer nos termos da lei» e, expressa e
formalmente, a «economia de mercado, na base dos princípios e valores da sã
concorrência, da moralidade e da ética, previstos e assegurados por lei», bem como o «respeito e protecção à
propriedade e iniciativa privadas» e a «função social da propriedade».
Outra questão, que a Constituição
portuguesa não resolveu, é a do estatuto do «casamento», como instituição
tradicional sui generis e no modelo monogâmico e heterossexual, distinguindo-o,
quer das «uniões de facto», quer de outras formas de «parceria sexual».
Assim, na Constituição angolana,
em sede de «Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais» (Capítulo II, do
Título II) e de «Direitos e Liberdades Individuais e Colectivas» (Secção I), no
artigo 35º., se diz que: «1. A família é o núcleo fundamental da organização da
sociedade e é objectivo de especial protecção do Estado, quer se funde em
casamento, quer em união de facto, entre homem e mulher». O resto do artigo
regula ainda a filiação, proibindo a discriminação entre os filhos e a
utilização de qualquer designação discriminatória relativa à mesma filiação e
apontando para a igualdade dos filhos perante a lei.
O que quer dizer que ficam para
um outro secundário plano, inequivocamente de nível infra-constitucional, mesmo
depois do das «uniões de facto», outras formas de «parceria sexual».
Quanto ao mais, designadamente na
organização do poder político, o texto angolano é de um forte pendor
presidencialista, atribuindo todo o Poder Executivo ao Presidente da República,
como Chefe de Estado e órgão de soberania, além da Assembleia Nacional e dos
Tribunais, que também são órgãos de soberania.
Enfim, um texto com apenas 244
artigos, mas de onde são depurados quaisquer elementos ideológicos,
ultrapassados pela História e bloqueadores do «progresso» da sociedade,
vocábulo este abundantemente usado em todo o texto constitucional e onde é
expressa e formalmente reconhecido o, aí chamado, «sistema (económico-social)
de mercado». O que quer dizer que, enquanto este é, na Constituição portuguesa,
considerado a título residual e quase que só por omissão se admite, na
Constituição angolana é, desde a Lei nº. 12/91 e da Lei de Revisão
Constitucional nº. 23/92, conforme se relembra no Preâmbulo, convictamente
assumido e formal e expressamente admitido.
Virgílio Carvalho (Dr.).
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