1. - A IMPREVISIBILIDADE
A viagem
marítima, se não nos ficou nos genes, incrustou-se-nos nas imagens reitoras do
nosso inconsciente histórico.
Foi ela - os
seus barcos, as suas armadas, as suas ondas - que nos desafiou enquanto
portugueses.
Característica
fundamental da viagem marítima era, outrora, no mar desconhecido, a
imprevisibilidade, que atraía os portugueses.
Partir
desconhecendo se o regresso era certo.
Partir sem
conhecer porto de chegada.
Partir
ignorando, no tempo, o futuro, e, na geografia, a forma da terra.
Dessa
imprevisibilidade nasceu a primeira imagem portuguesa do mar – um penar
infindável que, se consolada pela Mão de Deus, terminaria no Paraíso: o livro Navegação de São Brandão espelha o pavor
e a atracção simultâneas que os portugueses possuíam do mar; se desprovida da
Mão redentora, findaria no inferno do mar gelado, pavoroso.
Da
imprevisibilidade se alimenta o relato paradigmático de todas as viagens
marítimas: a Ilíada e o périplo
inesperado dos dez penosos anos de Ulisses como paradigma literário da nossa
civilização. Ítaca, por seu lado, gravou-se na literatura de todos os tempos
como imagem substituta do Paraíso.
Se atentarmos no
itinerário físico e existencial de Ulisses e o compararmos com outras narrativas
modelares da viagem marítima, como a Eneida,
de Vergílio, a Navegação de São Brandão,
o Conto de Amaro ou Os Lusíadas, reconhecemos que no coração
de todas estas obras reside a imprevisibilidade enquanto estado humano de
absoluto inesperamento, de fortuitidade, de acaso, de percurso animado de
múltiplos acidentes e peripécias que desviam o herói de atingir o seu
objectivo, atrasando-o, jogando-o por caminhos e situações exteriores e por
sentimentos e estados interiores que lhe são totalmente desconhecidos,
penalizando-o, forçando-o a ceder ou a resistir, a recuar ou a avançar, a
hesitar e a conciliar, no que foi definido pelos gregos como a famosa “manha”
ou “astúcia” de Ulisses.
A Vasco da Gama,
a Pedro Álvares Cabral, a D. João de Castro, a Afonso de Albuquerque, adoçou-os
nas suas viagens a eterna Mão de Deus.
Entrar no mar
era entrar no reino do desconhecido, que tanto assombrava como maravilhava.
Porém, nos
tempos portugueses medievais e renascentistas, a imprevisibilidade da viagem
não se tecia de um absoluto acaso. Diferentemente, a Mão de Deus existia por
detrás dos acidentes de percurso sofridos pelo herói, constituindo-se como
prova pela qual a divindade ou o Destino (a moira
grega ou o fatum romano)
experimentava as virtudes do herói. Ulisses, como Amaro ou Brandão, sofrem
diversos tipos de tentações (é-lhes oferecido riqueza, poder, fama…),
experimentam o tremor e o terror kierkegaardiano da angústia e do desespero, da
solidão, sofrem, expiam, suam, vomitam todo o mal que se acolhe no seu interior,
purificando-se, e, finalmente, superadas as limitações, transcendidas as
provações náuticas, o herói atinge a sua realização: Ulisses reconquista a sua
Ítaca, Brandão e Amaro sofrem a visão do Paraíso eterno, a Terra dos
Bem-Aventurados, ou as Ilhas Afortunadas.
Se seguirmos a
lição dos clássicos, não há literatura de viagem – sobretudo de viagem marítima
- que não seja tecida destes cinco constituintes: imprevisibilidade, terror do
inesperado, provação/tentação, sofrimento/expiação e visão transcendente.
Um literatura de
viagens desprovidas destes cinco elementos constituintes transfigura-se num
relato, um diário de viagem, um relatório técnico, como as cartas ânuas dos
jesuítas ou as descrições de lugares exóticos, torna-se uma literatura de tipo
historiográfico, como o é a maioria dos livros de viagens da nossa Expansão
Ultramarina. Diferentemente, Os Lusíadas ou Peregrinação constituem-se como a nossa
mais perfeita narrativa de viagens.
(excerto)
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