sábado, 31 de maio de 2025

Dos refluxos históricos

 


Se os refluxos esofágicos se resolvem em minutos – ou, no máximo, em poucas horas, como se comprovou na mais recente campanha eleitoral em Portugal –, os refluxos históricos podem demorar décadas, por vezes séculos. Como os vulcões que, sem aviso prévio, expelem lava recalcada, os refluxos históricos expelem fracturas que não já visíveis a olho nu.

No quadro europeu, o país que, provavelmente, vive mais assombrado com essas fracturas históricas é a Alemanha. Daí, por exemplo, o continuar a apoiar acriticamente tudo o que Israel faça – por pior que faça, como tem feito, mais recentemente, na Faixa de Gaza.

Em Portugal, a uma escala menor, temos também essas fracturas, essas sombras – desde logo na nossa relação com Espanha. No recente apagão eléctrico, elas vieram uma vez mais ao de cima. Como se, de facto, desde sempre e para sempre, “de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”. Sendo que há reais factores de fricção – não só na gestão da rede eléctrica como, em particular, na gestão dos caudais fluviais.

A nível estritamente endógeno, há, porém, a nosso ver, uma fractura muito mais funda, ainda que, aparentemente, já distante no tempo – falamos em todo o processo de descolonização, que obrigou mais de meio milhão de portugueses a saírem, subitamente, de vários países africanos e a retornarem a Portugal. Sendo que muitos deles não foram realmente “retornados”, dado que haviam nascido nesses países.

Não é aqui o espaço para reconstituir todo esse processo traumático. Sim, sabemos que vivíamos um contexto especialmente adverso no plano geopolítico que inquinou todo o processo da nossa descolonização. Seja como for, houve mais de meio milhão directamente sacrificados nesse processo. Sendo que, como nós próprios já defendemos, se o seu sacrifício fosse o sacrifício necessário para que os países donde vieram prosperassem, então poderíamos, no limite, considerar que esse tinha sido um sacrifício “aceitável”, por mais que “tragicamente aceitável”.

Na verdade, porém, não foi nada disso que se passou. Com a expulsão dos chamados, mal chamados, “retornados”, esses países ficaram altamente depauperados a nível de mão-de-obra qualificada, o que desde logo inviabilizou qualquer miragem de real prosperidade. Para além disso, a prometida “libertação” nem chegou a ser sequer uma miragem. Basta dizer que, sem excepção, todos os novos regimes políticos que então emergiram foram regimes de partido único.

Mas o que tem isso ainda a ver, perguntar-se-á, com os resultados eleitorais deste mês de Maio? Na nossa perspectiva, bastante, no caso da força política que ficou em segundo lugar. Há uma massa humana (que entretanto se alargou à geração dos filhos e dos netos) que escolheu claramente esse partido para expressar o seu ressentimento histórico, ainda que por vezes ele se expresse de forma indirecta – por exemplo, no ataque à “subsidiodependência” (de que eles não beneficiaram, na maior parte dos casos, quando tiveram que passar a viver em Portugal), e também num certo racismo simétrico ao que eles próprios sofreram – dado que, em muitos casos, tiveram que sair de África apenas porque eram “brancos”.

Renato Epifânio

Presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono


Sem comentários:

Enviar um comentário

CARO/A VISITANTE, CONTRIBUA NESTA DEMANDA. ACEITAREMOS TODOS OS COMENTÁRIOS, EXCEPTO
OS QUE EXCEDAM OS LIMITES DA CIVILIDADE.

ABRAÇO MIL.