segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Milhafre – apontamentos do corvo

1. Visita diária ao Milhafre: coisas novas lá estão, tanta coisa a dizer. Tanta coisa a fazer. Releio o texto de Pessoa, lembro-me dessa edição de 1979 do Sobre Portugal - li-a na altura, tanto tempo parece ter passado. Se calhar tanto tempo passou: "... o português que o não é (...) é o que governa o país. Está completamente divorciado do país que governa (...)". Era decerto assim em 1920, ainda era um pouco assim quando pela primeira vez li essas linhas. Hoje, o português que o não é refez o país à sua imagem. Por isso já nem sequer governa, e pouca gente dá por isso. O deserto basta-se a si próprio.

2. Só, incessante, um som de flauta chora... se nos não guiar a voz dos poetas, a voz funda e nocturna dos poetas, quem nos dirá de caminhos a andar? E no entanto - ou por isso mesmo - o nosso trabalho passa e depende das coisas pequenas. Assim a viagem grande das naus, que se ergue dos marujos e da firmeza simples das cordas.

3. África (Bahia?) uma imagem e um anúncio breve da Miriam. A imagem, forte, fica por detrás do texto que o Clavis aqui deixou: economia de serviços, agricultura, falsa riqueza, destruição de um país. Tenho que voltar a isto. Questão fundamental, por detrás também de todas as outras: como orientar a viragem? Os nossos primeiros marinheiros aprenderam que regressar não é apenas voltar para trás. Soubemos, ou souberam os europeus por nós, acumular montanhas de oiro que se transformaram em fábricas que se transformam agora em coisa nenhuma. E é verdade que o interior está deserto, que a terra é precisa, que o artesão dá às coisas um sabor que é feito de vida e água. Mas quantos de nós quererão mesmo embarcar? Dizem-me que a D. João II não faltavam capitães - como arranjavam eles os grumetes e os remadores? Talvez em cada um de nós haja um Gama, um Nicolau Coelho: ai de nós se não houver, ai dos marinheiros do mar. Pois já não estamos no princípio do mundo.

4. A mesma questão no manifesto do vale do Tua que o António José Borges nos traz. E preferirei sempre as coisas concretas, eu que não sou um activista, um engagé (como se dirá isto em Novi-americano?). Deveríamos talvez ser a rede de todas as redes, o lugar de todos os lugares. Hoje no Público, o Ribeiro Telles falava nas árvores - uma a uma. Há um texto magnífico do Saint-Exupéry sobre a concentração do carpinteiro na sua tábua - lugar e fundamento do navio.

5. Não conheci o Agostinho da Silva. Mas conheci alguns "proscritos desta merda toda". Como o lobo das estepes do Herman Hesse, são eles que guardam as portas da cidade adormecida. Sim, Klatuu, os efeitos da palavra e da viagem e da aliança são incomensuráveis.

6. A Europa é provisória, o Ocidente é eterno. O lugar de Portugal na Europa - e o lugar da Europa em Portugal - serão ainda um pretexto para MIL conversas. Aqui o nómada serei eu, exílio voluntário e companhia ao rei encoberto. Mas fica-me uma questão mais ou menos colocada num comentário, "o que é ser Europeu?". Pela minha janela olho a noite lisboeta. Europeu é aquele cuja pátria é feita de pedra e de madeira, e da lei que é a pedra e o fundamento e que não é palavra eterna de um deus nem capricho fácil de um homem. Aquele cuja pátria está nas palavras deixa-me triste o Outono, ou era uma vez uma princesinha, ou partiu à aventura, e o mar. Ser europeu é sentir o vazio da Europa-das-coisas.

11 comentários:

  1. profunda e ampla visão transversal de um espaço que ganha um interesse e vigor comparável apenas aos tempos do blogue da Nova Águia...
    E para qual és um dos mais importantes contribuintes, Casimiro!

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  2. Olha, o Corvo também tem um diário. É só aves raras...

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  3. bem, se estamos a sortear nomes de aves, fico para mim com a "aventesma", por diversíssimas razões... todas acertadas!

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  4. Ser europeu é valorizar mais um texto de Aristóteles que contemplar um mantra... :)

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  5. Bela, sim. Mas isso é eterno - por isso é ocidental, não europeu.

    Tenho que organizar um workshop de metapolítica ;)

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  6. Europeu e bem europeu, nada, até, poderia ser mais (os américas veneram o oriente de cu para o ar, adoram mantras, etc, por isso nos deram aquela demorada sessão de droga, sexo e dança chamada «movimento hippie»). O Ocidente não existia (e este gosto - diria pelo verdadeiramente universal, que é o homem e não o mundo nem Deus - é o mais pretérito dos hábitos europeus), excepto no mito-crisálida da Atlântida.

    E deixa o Oeste para os westerns... apesar de tudo: os americanos são civilização ocidental (e é nesta que os quero), mas também o são Israel e (já) o Japão; e também o é (em boa parte) a margem de lá do Mediterrâneo (é-o, se o deixarem, o Líbano, são-no a dois quintos o Egipto, a Argélia, Marrocos, é-o a 60% a Turquia).

    P. S. A Europa é o específico, o leque fechado; o Ocidente é o leque aberto...

    Abraço MIL. Vou comer uma maçã e beber um café... :)

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  7. O mito da Atlântida tem imenso que se lhe diga...

    Claro, há uma afinidade com o Japão que não nasceu só com o fabrico de transistores, e a margem sul do Mediterraneo, etc.

    Mas não se trata disso, e esse 'Grande Ocidente' que se confunde com a NATO (e o cristianismo) é uma armadilha. Se não fosse, quem tinha razão eram os políticos que nos dizem que apenas temos que nos 'desenvolver', e não haveria dúvidas de que a língua imperial seria o inglês.

    Os inimigos de Portugal SEMPRE foram os dominadores do mar: Veneza, Holanda, Inglaterra. Os materialistas dizem que se tratava de rivalidades entre usurários.

    O primeiro facto explica que a nossa sobrevivência como Reino independente tenha sido tão difícil, o segundo explica que a nossa História seja tão incompreensível.

    Vou também ao café ;)

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  8. Pensa nisto: geograficamente, a California (foi aí que nasceu a hippymantragem e, não por acaso, Hollywood) está para a América como Portugal para a Europa).

    É uma finisterra estranhíssima (invertida, diriam alguns) - não dá para o Mar, mas para o Vazio.

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  9. Isso já é muita cowboyada... :)

    Os inimigos do Império Português foram os Portugueses que expulsaram os judeus, e que foram fundar a Nova Jerusalém para a Holanda, fazendo desta o mais expedito dos impérios marítimos... O Padre Vieira viu isso, mas as «falinhas mansas» que foi dar lá e cá, não deram muito resultado; enfim, talvez tenham salvo o Brasil de hoje estar divido em três línguas: Português, Inglês e Holandês (mas há quem por terras de Vera Cruz ainda lamente...).

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  10. Há, sim. Em Recife estive na ponte Guilherme de Nassau :)

    É o raciocínio dos usurários: "estaríamos mais ricos".

    E não é falso.

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